Cruás, cracas destiladas em veneno desconhecido. Eretas, tesas e presas em si. Os dentes se arranham e se afiam, com tudo. As vitimas se foram, agora são outras, transmutaram-se na volta do tempo.
Fios desfeitos da antiga vida oferecem-se ao tear. Quem souber, refaça o novelo frágil, quebradiço, emendado com pequenos nós. Firmes se esticam e retesam, guardando entre si apenas história de amores desfeitos.
Dois de novembro de dois mil e doze.
Toque de recolher, dia de Finados, lua minguante na Babilônia. Muitas esquadrias da polícia espalhadas pela cidade, os foragidos só aumentam. Chegando em casa tranquilo salvamos nossas peles, dia a dia. Num sonho forte, tapas na boca do sujeito, esforço profundo pra olhar dentro dos olhos da outra, nada, um túnel negro sinistro, infinito. Atestam-se que primos acabam com a infância um do outro, um jogo sem graça. De cinco deles, nenhum salvou a boa relação, as piores vitrines para o mundo.
Toque de recolher, 02:03 da manhã, um mundo de Cruás à solta, volte para o lugar de onde te deram a luz, se proteja, esqueça os jogos esta noite. Durma coberto por seus anjos, se entregue aos sonhos. Seus próximos passos.
Quero entoar uma reza
Com zêlo
Aos anjos que abandonaram suas asas
Aos gestos de desapego
Louvada seja a folha seca
Desmanchando-se sob teus pés
Todas as juras de areia
E tristezas que o tempo desfez
Abençoada a impermanência do instante
A menina debaixo da chuva, errante
Chutando a lua nas poças d’água
E a riqueza despida de mágoa
Penhorando seu diamante
Aos viramundos de coração
Que escreveram seus nomes no leito do rio
Derramaram amores em peito vazio
Agradeço cada tropeço e lição
E ofereço um brinde
Ao esquecimento dessa canção
Chuva de Largatixas é uma história de féis. Féis é um dos plurais de fel, aquele humor muito amargo contido numa vesícula aderente ao glóbulo do fígado. A chuva de lagatixas é uma verdade para aterroziar as duas parentes dos quase extintos Cruás, as duas mariposas das asas de fel.
Até hoje elas tinham asas longas e esgarçadas, e de cada ponta das asas, uma bolsa rota de fel deixava escorrer pitadas de um pó brilhante e escuro.
Não era veneno letal, embora a falta de coragem no tempo de dizer a verdade, de embriagar-se de ódio mas colocando-o no vento. Ali nas bolsas de fel, o ódio ficava guardado, escondido, secreto. A explosão das mariposas só poderia ser feita com uma chuva de largatixas gigantes, gosmentas e vorazes.
Elas comeriam todas as mariposas. Elas choveriam do céu e subiriam pelas privadas, pelas camas, pelos ralos dos chuveiros. Entrando em cada poro, em cada imaginário. Muitas e muitas largatixas. Os filhotes delas comeriam os vossos, e assim se extinguiria a espécie dos Cruás, dos originários do medo e da vergonha, e do pudor e da inveja e do segredo.
Um família de muitos segredos. Essa família dos Cruás.
…
Lord
I must be strong now
I don`t belong now
In this world anymore
I`ll say a final prayer for
Those I care for
Who`ve kept my company
My destiny is clear…
A criança dorme, a avó faz a casa cheirar canja, o avô assobia baixinho, a mãe tenta não esquecer algumas velhas canções. O pai está em viagem, o dinheiro está acabando, a cama está desfeita e muito pouco resta daquele perfume que já nos fez sonhar loucuras. À essas gotas que ainda se contam, no vidrinho transparente, dedico esta manhã. Vamos respirar o ar frio do outuno, vamos correr de mãos dadas, vamos acordar, minha criança, vamos juntas, pro futuro.
não quero acreditar no que ouvi.
A mãe de uma menina de 6 anos no máximo
dizendo pra menina: “isso é coisa de menino!”
sabe o que a menina queria imitar?
o menino que tava subindo na árvore
e a mãe da menina disse :
“isso é coisa de menino!”
Isso é coisa de criança, minha senhora
não disse
mas queria ter dito
No sonho eu não coseguia ter força nos braços tampouco destreza pra fazer cestas, o basquete, tão familiar, a quadra, a delicia do salto, o impulso, nada acontecia no sonho. Hoje fui andar no parque e as quadras me atrairam. Pedi e joguei, acertei a bola várias vezes. Cesta de 2 e de 3 pontos. Lances livres. Magic Paula, Hortência, as heroínas da infância estavam presentes. E o som da cesta, de corrente era o aro e a cesta, não de fibra. O xuá era metálico, delicioso aos ouvidos.
De volta a força, de volta a gana da vida, por um momento, por uma bobagem, com meninos de 15 anos, arremeçando, ombros livres. Pá pá pá, deslizando na quadra. Cesta neles. Cesta em nós.
20:29, uma noite quente com algum vento. De dentro um quase eco, já distante, se tornando sereno aos poucos. Comida suficiente, sono picado, algumas certezas e uma boa chance. Cortar. Cortar. Continuar sendo capaz de ouvir. A vibração que se seguiria era quase o suficiente, poucos dias de sol, três de chuva e estaremos prontos de novo.
Numa corte há cinco moças e quatro rapazes. Não se sabe a matemática do corpo, não sabe contar os minutos de espera, eram as mesmas pessoas de sempre, não podia entrar, não podia bailar. O salão, rodeado de guardas e cães servia para acorrentar pela eternidade o desejo de antes. Antes já era longe, já não era. Esquecido na beira do açude, no balcão de um bar, aquele relógio, já fora roubado, dez vezes quem sabe. Num é miado, é piado, é grito fraco, mas vamos ver, vamos sentir ainda. A vibração.
Havia uma profecia sobre os 7 fios do bigode do gato. Sem saber do que se tratava, arrancaram um dos fios e jogaram no vento quente da cidade.
O gato ficou com 6 fios de bigode, 3 pra cada lado.